Em dezembro de 2017, Fernanda Vasconcellos passou por uma experiência que não vivia desde o começo da carreira: uma bateria de testes para interpretar Lígia, uma das protagonistas de Coisa Mais Linda, série da Netflix que retrata a vida de quatro mulheres no Rio de Janeiro do final da década de 1950. Os meses de espera se transformaram em mais uma jornada de autoconhecimento para a atriz, que viu no processo uma chance aprender mais sobre seu lugar no mundo. “A autorização para Lígia ser quem quer ser vem do outro. Isso me fez pensar muito no que eu, Fernanda, me autorizo a fazer, quantas vezes eu deixo de ser eu mesma quando tenho que sorrir para agradar alguém. Eu comecei a me questionar o quanto eu deixo morrer em mim pra agradar outras pessoas”, conta ela, fotografada na The Mansion, em Santa Teresa, no Rio.
Na série disponível do serviço de streaming, Fernanda mostra um talento até então desconhecido dos fãs: a voz. “Sou eu que canto, sim, minha voz não é mixada. Eu não cantava antes, nem no chuveiro tinha esse hábito e aprendi algo novo”, diverte-se a atriz de 34 anos, que teve aulas de canto. Fã de Bossa Nova, ela tinha poucas referências, além das históricas, para viver uma mulher reprimida dos anos 1950.
“O que eu sabia era a vida das minhas avós: uma se dedicou aos 12 filhos, e a outra também estava sempre a serviço do meu avô e dos filhos. Eram mulheres que ficaram dentro casa, não trabalharam. Eu não sei, por exemplo, qual era o sonho das minhas avós”, lamenta Fernanda. Já Lígia quer ser cantora, um desejo reprimido pelo marido, Augusto (Gustavo Vaz), em uma relação que se torna cada vez mais abusiva e violenta, o que fez com que Fernanda repensasse a sociedade que ajuda a construir. “A gente tem que continuar lutando. Quando eu penso nas coisas que o feminismo traz, eu digo que sou feminista, sim”, avisa.
Em um relacionamento desde 2013 com Cássio Reis, 41, Fernanda anda pensando na maternidade (“entre o sim e o não”) e curte a convivência com enteado, Noah, 11 (“criança sempre traz alegria”). Enquanto não chega a uma decisão na vida pessoal, ela se dedica à carreira, iniciada ainda adolescente, para ajudar a família, com trabalhos como Malhação, Páginas da Vida e Haja Coração, entre outros. Da adolescência vítima de bullying à estrela de séries e filmes – apenas esse ano tem três para sair, Deus é Brasileiro, Volume Morto e Boca de Ouro –, a atriz encara uma nova fase após 11 anos de Globo.
“Não estava cansada, mas eu comecei a não ficar mais intrigada. Buscava coisas novas, diferentes, estimulantes. Queria me jogar no mercado para aprender novas relações, novos roteiros, novos tipos de personagem, de produção sem dinheiro e com perrengue”, explica Fernanda, que, na vida, diz sempre seguir seu caminho, mesmo com medo. “Não é o meu medo que vai me parar, não (…) Coragem é você ter medo e ir em frente”, ensina.
SORORIDADE
“Mulheres da minha idade, mais velhas e mais jovens vêm me falar sobre a série. Algumas se identificam com a Lígia. E se a mulher se identificou, se sentiu corajosa para modificar alguma coisa naquela relação dela, não apenas na relação homem/mulher, mas na relação familiar ou de emprego, se ela se sentiu minimamente encorajada por Coisa Mais Linda… Olha, que a série seja um acalanto, um suporte para essa mulher conseguir buscar alguém na vida real que possa ajudá-la, alguém com quem ela consiga abrir um diálogo, confiar para falar e descobrir um lugar mais seguro.”
COISA MAIS LINDA
“A série não traz respostas, traz questões: me fez pensar no quanto a gente evoluiu e se estamos contribuindo para uma sociedade em que vale a pena viver, para que a vida tenha mais propósito e mais valor. Estamos construindo isso? Porque olha o que uma pessoa pode fazer com a outra simplesmente por ela não agrada (as agressões sofridas por Lígia).”
FEMINISTA
“Eu acredito que todo mundo exercendo a mesma profissão tem que ter os mesmos salários, que os direitos humanos são humanos e são iguais. Mas não existe nenhum país no mundo em que se possa afirmar que os direitos são todos iguais. A gente tem que continuar lutando. Quando eu penso nas coisas que o feminismo traz, eu digo que sou feminista, sim. Mas eu acredito que a evolução não está só no grito e no grande; movimentos pequenos são extremamente importantes, e são eles que fazem a roda girar.”
EMPODERADA
“Me sinto empoderada quando eu faço as minhas escolhas porque são escolhas minhas e as consequências delas também são minhas. São pequenas coisas do dia a dia, ‘eu vou me submeter a isso, eu escolho obedecer àquilo’. Escolho usar minha voz para existir, para dizer não, ‘isso eu não consigo’, ‘isso eu não posso’. Eu tenho liberdade para fazer essas minhas escolhas, então isso me deixa empoderada. Eu vou escolhendo e vou me expandindo.”
SER MULHER
“Nunca passei por uma situação de assédio. Também nunca senti minha opinião desvalorizada nem me senti desautorizada a fazer alguma coisa que estava a fim por ser mulher, mas talvez eu não estivesse tão atenta. Hoje eu sou mais atenta, fico mais ligada. Mas já vivi, por exemplo, a situação de sair da academia e evitar ir a pé para minha casa porque eu ficava com medo de ser estuprada no caminho. A mesma coisa quando voltava da faculdade, às vezes da escola. Era uma situação, era uma questão. Eu tinha medo.”
FERNANDA VAI À LUTA
“Eu comecei como modelo, mas não é que queria ser modelo. Foi uma coisa de grana. Meu pai (Sérgio, engenheiro, 65) perdeu o emprego, eu tinha 13 anos e falei ‘não vai ter jeito, vou ter que trabalhar’. Meu irmão (Sérgio, 32, TI) já tinha feito umas fotos, mas não curtia, preferia ficar na rua jogando bola. Eu fui, fiz e falei ‘gostei, quero fazer, posso fazer?’. E a minha mãe (Adenilde, dona de casa, 61) disse ‘pode’. E aí foi indo e, desde então, eu ajudo todos eles.”
MODELO, ATRIZ, ARTISTA
“Eu não pensava em ser atriz e nunca fui modelo mesmo, porque, né, não tenho nem tamanho para isso. Mas fazia fotos e comerciais que tinha texto, uns curtas, e me apaixonei. Eu adorava aquilo, por mais perrengue que tivesse. Eram horas na fila de um teste para propaganda, terminava uma seleção e ia para outra. Mas o prazer que eu sentia quando eu estava falando o texto daquele comercial… Eu esquecia o dia inteiro que tinha que esperar em pé. Tudo ficava menor.”
FANTASIA E DOMINGO LEGAL
“Meu tio Luís trabalhava no SBT nessa época, ele era da cenografia e falou ‘está rolando um teste de uma programa novo, são várias meninas. Você não quer fazer?’. Nunca vou esquecer, foi a primeira vez que eu entrava em um estúdio grande de televisão. Pensei ‘nossa, isso aqui é demais, é o que quero fazer’, e fiquei lá. Eu adorava (o Fantasia). Depois fui para o Domingo Legal. Levava minhas lições de casa, as meninas me ajudavam com o que eu tinha dificuldade.”
INFÂNCIA, ESCOLA E BULLYING
“Eu ficava na rua o dia inteiro, brincava em terreno baldio, a imaginação ia longe. Hoje não dá mais. Na escola, nunca perguntei o que achavam das minhas escolhas (de carreira). Me interessava o que eu achava, e eu adorava. Teve uma época que um menino da 8ª série gostava de mim. As meninas ficaram bravas, queriam me bater, eu recebia várias ameaças. Fiquei com muito medo. Era difícil, meu pai largava o emprego porque a professora ligava, chamavam a polícia para eu poder sair. Talvez hoje alguém tomasse uma providência, mas há 20 anos as pessoas não entendiam o que era bullying, nem tinha esse nome. Mas, graças ao medo de apanhar, tive coragem de trabalhar mais e consegui pagar uma escola e sair daquela.”
CRIAÇÃO
“Eu tenho um pai que é uma delícia de pessoa, ele me escuta, tive uma criação bacana. Mas quando fui fazer faculdade, eu quis fazer artes cênicas, e ele falou ‘pensa bem, faz uma faculdade de verdade, não vou te ajudar a pagar uma faculdade que não seja outra coisa’. E eu ‘tá bom, vou fazer Direito, mas vou continuar trabalhando’, e ele ‘tá bom’. Fui até o quinto ano, ficou faltando só a monografia e as horas de estágio. Até que falei ‘vou pro Rio fazer Malhação‘. E fui.”
TELEVISÃO
“Eu fiz teste a vida inteira, fiz para várias novelas, fiz diversas vezes para Malhação. Aí quando me chamaram mais uma vez para Malhação, eu disse ‘não conheço ninguém que passou, é como ganhar na loteria’. Mas eu fui e passei. Não tinha experiência com roteiro, nunca tinha estudado um personagem. Conheci pessoas interessantes e comecei a estudar, fiz curso de teatro.”
MEDO E CORAGEM
“Se eu tive medo de vir para o Rio fazer Malhação? Nada ia me parar ali, nada (ênfase). Deu medo, muito, até hoje tenho medo, mas não é o meu medo que vai me parar, não. Tive medo, mas nunca pensei se tinha feito a coisa certa, ou se estava preparada; eu sabia que era isso que eu queria. Tive medo quando fui para Amsterdã gravar Páginas da Vida, nunca tinha viajado para fora do país, estava sem ninguém, não conhecia ninguém. Não foi fácil. A pessoa que tem coragem também tem medo, e a coragem é você ter medo e ir em frente, seguir. Vai com medo mesmo”.
TRANSFORMAÇÃO
“São nesses momentos em que a gente tem que tomar a rédea da vida e ir com medo que a gente evolui e cresce, amadurece e fica mais criativo. Quando eu quero ter o controle das coisas, eu engesso. Mas se entendo a situação que eu estou percorrendo, as coisas acontecem de uma forma ou outra, e compreendo que faz parte de um caminho de transformação. Pelo menos para mim, as coisas acontecem de uma maneira que me surpreendem.”
AUTOCONHECIMENTO
“Aceitei que eu não tenho o controle das coisas. Para ser atriz, você precisa se conhecer demais, para não se perder e começa a viver irrealidades. Não me imagino fazendo outra coisa. Não é ‘ai, que lindo, tenho prazer no que eu faço’. É bonito, mas não é só bonito. Não é que é lindo; é sofrido demais, é difícil demais, e você se conhecer demais dói. Não é que me conheça totalmente, mas estou caminhando eu já consigo perceber.”
CENAS DE NUDEZ
“Nunca me senti desconfortável em nenhuma cena nua, ou a primeira coisa seria dizer não. Mas não é uma questão. Eu, Fernanda, sou tímida, eu não consigo me imaginar no Carnaval de biquíni. Acho maravilhoso quem tem essa liberdade com o corpo.”
BELEZA
“Beleza às vezes ajuda e às vezes atrapalha, mas isso são coisas que acabam sumindo, dissolvendo com o trabalho. Em Coisa Mais Linda, o Caíque (Ortiz, diretor-geral) me achou muito pequena para fazer a Lígia. Não foi por isso que ele não me escalou. Mas já perdi trabalhos por falarem ‘não, mas você tem olho claro’, e era um personagem que eu estava louca para fazer. Eu apenas me cobro estar bem, me sentir confortável. Quando eu estou confortável comigo, eu me sinto absolutamente bem”.