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Autoritarismo, patrimonialismo, corrupção e as novas democracias camufladas

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Em comentário sobre o livro de Lilia Moritz Schwarcz, Sobre o autoritarismo brasileiro (Companhia das Letras, 2019), Antonio Mammi, na edição de Quatro cinco um, de junho corrente,  atribui à autora a paternidade da expressão “democratura”, entendida como regimes que acreditam que “as democracias se limitariam ao sucesso eleitoral” imediato.

O problema é o que viria depois desse ritual, a exemplo do que ocorreu a  muitos países, em período recente. De fato, a expressão “democradura” foi construída pelo sociólogo suiço Max Linger-Goumaz, em seu livro Le démocrature dictature camouflé, démocratie truquée,Paris, Éditions L’Harmattande 1992, 364 p.

Temo-nos ocupado, em textos anteriores, sobre desse desvio de conduta democrático-republicano que a muitos parece trivial e próprio aos modernos sistemas politicos, no cerne da representação do que se convencionou chamar retoricamente de “Estado democrático de direito”.  Essa impressão está longe de refletir a verdade. São tangenciamentos desviantes, tolerados pelas tribos dos extremos do quadrante politico e aproveitados pelo populismo, em alta mundo afora.

A maior parte dos especialistas tomam-na, ao contrário, como sintoma de quebras democráticas anunciadas, diante da indiferença das elites e das formações partidárias majoritárias. Indiferença que vale como tolerância e, de certo modo, cumplicidade. A elas aliam-se grupos de sólida inspiração conservadora, neoliberais envergonhados, negociadores vorazes de apoios e cooptações múltiplas, espécie de causação circular cumulativa, como sugeria Myrdal ao referir-se às questões econômicas. São a companhia ilustre do que Lenine nomeava (seria um toque de ironia na sua sisudez dogmática?) a “influência burguesa sobre diferentes ‘companheiros de viagem’ “.

Lilia Schwarcz emprega a expressão “democradura”, em seu livro, em meio a crítica  à visão de Martius e de sua “narrativa fundadora de uma monarquia recém-independente à procura de identidade”, nas suas lições de como escrever a História do Brasil. Ampliou o marco crítico aos autores  a quem credita o “mito de democracia racial” brasileira —  Sílvio Romero, Oliveira Viana e Gilberto Freyre (os paulistas não perdoam Gilberto Freyre e sua visão heterodoxa das nossas origens luso-tropicalistas…). No mesmo passo nomeia Florestan Fernandes e o desmonte que a ele se atribui do mito da democracia racial. E conclui citando Clara Nunes e o seu dolente “Canto das Três Raças”. Os exemplos extraídos por Lília Schwarcz são pertinentes, casuísticos, por vezes, porém aceitáveis. É uma historiadora inteligente, mestre de seu ofício.

 A América Latina é um laboratório dotado de enorme criatividade para a manipulação das novas “democraduras”, mas não detém o monopólio dessa composição bem sucedida, hoje caída em domínio público. O Leste europeu mostrou-se pródigo em experiências do gênero, a Grécia, a Turquia, a Venezuela criaram a sua versão, calcadas em experiências locais; não valeria a pena, ça va sans dire,mencionar Cuba, seus experimentos políticos e as suas corruptelas semânticas. Afinal, os líderes cubanos nunca mostraram empenho em parecer uma democracia, tampouco reivindicaram essas imunidades.

Nessa parte do mundo civilizado, guardamos, entretanto, alguns récordes memoráveis no exercício dessa amorável farsa democrático-republicana. Descobrimos, por aqui, a fórmula das ditaduras longevas, dos Macondos construídos pelo medo e pela ignorância, alianças nascidas da partilha dos bens do Estado, dos legados familiares e da contravenção organizada. Os governos, salvo raras exceções rituais de práticas democráticas passageiras, são produto de celebrado conluio entre as elites endinheiradas e lideranças “revolucionárias”,  extraídas de uma íntima associação de atores públicos e empreendedores privados, convergência de interesses entre corporações de negócios e agregados sindicais. Juan Linz mergulhou com grande competência na análise das elites locais e mudanças sociais, na Europa e na América Latina. O Brasil e a Espanha, dentre outros exemplos, foram tema central de alguns de seus livros sobre a institucionalização de regimes autorirários, tema de sua cuidada eleição. Linz é fonte indispensável de inspiração para quem se aproxima do tema e pretende aprofundá-lo.

Em sua versão moderna, autocracias e governos de exceção perduram amparados pelo salvo-conduto de um republicanismo democrático suspeito, protegido pelo batismo de bandeiras ideológicas que recordam lances libertários de um passado distante, cuja história se perde na noite de alianças espúrias. Nessas encostas andinas, mais do que em outras partes do mundo, a ignorância leva os homens a renunciar à liberdade. E, por via de consequência, submete-os à autoridade superior do Estado, submissão que os faz sentirem-se protegidos: a submissão é mais fácil de enfrentar do que a liberdade. Nesse cenário feliniano, no qual o “non-sense” ganha cores de realidade e reproduz a tibieza de relações sociais ambíguas, “democradura” e “democracia” perderam seu significado conceptual de origem. A estreita aliança entre governos assim constituídos e o aparato legal do qual se servem, em busca da legalidade que os  tornam legitimos, aprofundam esses laços indistintos e os fazem parecer democráticos.

Mais avisados andaríamos se limitássemos o horizonte dessa análise de situações intencionalmente confusas às últimas duas décadas, precisamente quando ocorreu o primeiro afastamento de presidente da República por impeachment na América Latina. A regra nessa parte do mundo de matriz Latina eram as revoluções anunciadas, com data marcada e intervenções pontuais, à margem das tentações democráticas.

Dá-se pela primeira vez em 1993, na Venezuela, com a revocação do mandato do presidente Carlos Andrés Perez, vítima de duas tentativas frustradas de golpe. Substitui-o o coronel Hugo Chávez, presidente por 14 anos, no exercício de mandatos sucessivos, nos quais se tratou de preservar o rito de orígem das democracias em processo transgênico de transformação em democraturas, segundo o modelo analítico de Linger-Goumas.

Recorremos na América Latina ao processo de deseleição em situações consideradas extremas do ponto de vista da evidente vulnerabilidade constitucional. Em outras oportunidades, valeu o golpe tradicional, de modelo castrense, que nessa espcialidade sempre fomos muitos bons, modéstia à parte. Não é longa, muito menos exaustiva a lista dos governantes vitimados por essa invenção sofisticada de inspiração britânica. Fernando Collor de Mello, no Brasil, afastado em 1992, por impeachment. Renato de Manuel Zelaya, Honduras, eleito em 2005, afastado em 2009, pelo Congresso, com base em acusação de desacato à Suprema Corte e ao Tribunal Supremo Eleitoral. Fernando Lugo, bispo, afeito às querelas divinas e às terrenas, eleito em 2008 e afastado por “impeachment”, em 2012, acusado por mau desempenho de suas funções. E, por fim, Dilma Rousseff cujo processo de impeachment foi submetido ao Senado Federal, para apreciação de denúncias de procedimentos administrativos e contábeis ilegais e pelo conjunto da obra.

Em todos os processos mencionados, aprofundaram-se as controvérsias quanto ao móvel legítimo da providência legal e constitucional proposta. De instrumento constitucional legítimo, consagrado em muitos países de reconhecidas tradições democráticas e respeitável lastro constitucional, o instituto do impeachment transformou-se em “golpe” ou “contra-golpe”, ruptura democrática ou panaceia de intervenção preventiva, segundo as circunstâncias e as motivações compartilhadas. Aos que sofreram impeachment, segundo o modelo tradicional, restou o sabor amargo de golpe.

Aos que sonham com uma vingança cívica que tarda mas há de chegar, segundo lhes parece, o impeachment encontra com outros atores e variadas motivações a legitimidade de sua aplicação. A cada nova circunstância constrói-se nova narrativa.

Retornando à narrativa da “democradura” e aos trâmites teóricos que a explicam, no caso brasileiro, — já que somos tão diferentes de los hermanos do continente –, não parece impossível aceitar a ideia preconcebida de que o autoritarismo no Brasil tem características muito próprias. Seria, como bem explica Lília Schwarcz, uma “reflexão casada e separada”. Sérgio Buarque de Holanda já explicou essa especificidade, cientistas políticos de reconhecidos recursos teóricos e historiadores o fizeram (Weffort, Faoro, Nunes Leal, Honório Rodrigues, Celso Furtado, Maria Isaura Queiroz, Caio Prado Jr., Álvaro Moisés, O’Donnell, Lília Schwarcz…). A narrativa desenvolvida sobre a democradura brasileira tem substância e um respeitável acervo de experiências acumuladas.

As semelhanças entre o Brasil e outros países latinoamericanos mais nos distanciam do que nos aproximam. A não ser a pobreza endêmica e a corrupção, em torno das quais se consolidou um modelo sui generis de mandonismo e patrimonialismo, associado ao modelo colonialista, mesmo assim com características bem particulares. Desse modelo participaram e lhe deram fisionomia própria as elites e os movimentos populistas, um certo sindicalismo de resultados, e movimentos sociais disseminados em coletivos gerados em suas entranhas, sob o embalo de impulsos progressistas e de uma ingênua cumplicidade de suas vítimas potenciais.

 Sobre o autoritarismo brasileiro é um livro bem concebido. Não é objeto dessas notas, entretanto, fazer a crítica da sua estrutura, tampouco do conteúdo da obra. Valemo-nos do ensejo dessa menção, provocados, tão somente, pelas circunstâncias que estão na origem do projeto do livro. A análise que a autora propõe-se desenvolver sobre o mandonismo e suas íntimas conexões com o patrimonialismo no Brasil não está isenta de suas inevitáveis projeções no plano da corrupção de Estado e de seus atores, como explica com precisão Lília Schwarcz.

O fato de o projeto do livro originar-se no lançamento de dois outros livros recentes (Como as democracias morrem, de autoria de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, Zahhar, Rio, 2019; e Como a democracia chega ao fim,  de David Runciman, editora Todavia, Rio 2019) põe em relevo a motivação do debate, a partir de um cenário que extrapola as idiossincrasias brasileiras e a realidade histórica que condiciona a nossa vida como nação, povo e país. E Lília o faz com estilo e muito engenho.

O uso do poder, a distribuição de sua força, o latifúndio, o patrimonialismo histórico que vem ainda das capitanias, a “cultura do mando no Brasil” remanescente do Brasil Colônia, são imagens bem desenhadas pela autora. O coronelismo rural e a sua versão moderna, o coronelismo urbano, a concentração da renda, e o poder das famílias no Nordeste (Sarney, Calheiros, Alves, Caiado, Viana, Ferreira Gomes) são o pano de fundo desse cenário de relações ambíguas, que não escaparam a muitos escritores e romancistas (Graciliano, Lins do Rego, Jorge Amado, Raquel de Queiroz, Euclides da Cunha, Vargas Llosa, João Ubaldo Ribeiro, dentre tantos). Essas evidências não se esgotam, entretanto, no território geopolítico do que se convencionou chamar burocraticamente de polígono das secas, o Nordeste inscrito no orçamento das dotações que vêm alimentando secularmente as elites políticas da região e dando-lhe poder e influência por muitas gerações.

As grandes famílias que integram o “patrimonialismo da corrupção” são numerosas e, certamente, não se limitam às estreitas condições do mandonismo nordestino. Elas sobreviveram na Baixada Fluminense, na fundação de Brasília e de seu entorno miserável, entre assentados dos movimentos sociais, entre populações indígenas da Amazônia, nas colônias de emigrantes nos estados mais ao sul, pelas mãos de missões religiosas mergulhadas na indulgente obra de salvação das almas, nas favelas do Rio de Janeiro e de outras megalópolis, alimentadas pelas lideranças comunitárias e controladas pelos politicos munícipes. Sabemos que é assim, porque o Brasil é assim mesmo, extremamente diversificados, diversos e contraditórios são os nossos problemas. Não são poucas, nem irrelevantes as circunstâncias que nos mantêm distantes dos nossos vizinhos, não por soberba ou pretensão, mas por realidades incontornáveis.

No mais, o autoritarismo brasileiro é bem de raiz. Não é invenção recente. Não é narrativa construída por um deputado solitário, saudoso de seus ralos feitos castrenses, ungido presidente por vontade afirmativa ou conduzida por negativa assumida ou por equívocos de avaliação. Não é, a seu modo, narrativa de uma direita improvisada, levada ao poder pelo voto de um eleitorado consciente susceptível de perceber o que separa o populismo das tribos radicais que construíram uma narrativa sem identidade própria, ao sabor de influências teóricas dominantes, transeuntes e provisórias. Longe disso.

A contra-realidade tomada como arma de defesa e ataque de algumas hostes mais fundamentalistas do atual governo, as fakes news e as fake proofs, as estratégias de marketing e de desestablilização institucional são formas de intervenção com as quais convivemos há muito tempo. A construção de narrativas contraditórias, a denúncia do opositor e a sua desqualificação como interlocutor—sem que os seus argumentos sejam considerados – têm sinal duplo. Essa sinalização nos acompanha por todo o período republicano (deixemos os Bragança sossegados, por enquanto); aprofundam-se com os “agravos” à liberdade do período militar de governo para exibir, por último, a fragilidade do processo de redemocratização, incompleto e confuso, do qual fomos simples destinatários submissos de suas consequências, nunca protagonistas de fato.

Democradura é a forma de governabilidade que sobrou desse casamento híbrido entre a vontade de associar o Estado à verdade, com estratégias cavilosas para substituir a representação republicana e democrática pelos coletivos decisórios, e de assegurar apoio e financiamento a movimentos e lideranças ideológicas aliadas, aqui e alhures; é a a forma encontrada de associação do público com o privado, desvio avançado de caracterização de um novo patrimonialismo associado, por vias transversas, à corrupção.

Democradura é, também, essa forma ambiciosa, a que assistimos agora, de impor o acessório pelo principal, de ideologizar a ação do governo para justamente combater a ideologização do Estado. Como forma de governo serve para restaurar a rotina da Corte e encorajar a voz de conselheiros privilegiados, as tramas palacianas. Dela nos servimos por fim,  como quem usa aplicadamente o compasso para traçar uma reta e não para traçar um círculo ou marcar um segmento em uma reta…

Com um compasso, usa-se a ponta seca para det

Trocando em Miúdo

por Paulo Elpídio

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