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Casa do Estudante em Fortaleza abriga jovens que apostaram na educação para superar dificuldades

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Dois sentimentos conflitantes atravessam as histórias dos jovens que vivem na Casa do Estudante, no Centro de Fortaleza: medo e vontade. Vindos do interior e periferias de outros estados, filhos de famílias simples, eles desafiaram as circunstâncias e a descrença alheia para apostar na educação como caminho.

Foi assim com Felipe Jonnata, um garoto de 20 anos com sede de mudar não só a própria realidade, mas o mundo de quem mais precisa. “Passei por muita coisa, precisei de muita confiança em mim mesmo porque apoio eu tinha praticamente zero”. Ele e outros 117 jovens, estudantes de ensino médio, pré-universitários e universitários ocupam atualmente a instituição privada, que resiste há 83 anos na capital.

A Casa foi fundada em 1934 para dar subsídio a estudantes carentes que não têm condição para se dedicarem com exclusividade aos estudos. Inicialmente, o lugar funcionava como um dos principais departamentos do Centro Estudantal Cearense (CEC), criado também no início da década de 1930, como resultado de militância estudantil. O CEC congregava todas as categorias estudantins cearenses, e oferecia serviços assistenciais.

Moradia e alimentação são gratuitas para os meninos e meninas que residem na Casa do Estudante. O grupo compartilha quartos, banheiros, lavanderias, quadra de esportes, biblioteca, sala de estudos, auditório e refeitório. Em cada quarto mora uma dupla, e só é permitido dividir este espaço com pessoas do mesmo gênero.

Conforme lei municipal nº 8.130, de 1998, toda a despesa da instituição é mantida com 20% da verba arrecadada na confecção das carteirinhas estudantis, de ensinos fundamental e médio. Cerca de R$ 200 mil por ano.

‘Esse colégio abriu muito minha visão’

Felipe veio de Salvador em 2016, depois de passar um ano estudando e insistindo com coordenadores dos colégios mais renomados da capital cearense para ganhar uma bolsa de estudos. Foi negado por todas as instituições. O objetivo era ingressar no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), e Fortaleza foi a cidade escolhida pela possibilidade das turmas especiais de preparação.

Como última alternativa, conseguiu com um dos coordenadores que enviasse apostilas pelos Correios para que ele continuasse estudando de casa. A ajuda foi retribuída com um resultado positivo na prova do ITA, que acabou rendendo a Felipe ofertas de bolsas de estudos em todas as instituições de Fortaleza que o haviam negado anteriormente. Pela internet, ele descobriu a Casa do Estudante e mudou para a capital.

Felipe Jonnata é de Salvador e veio morar na Casa do Estudante para se preparar para o ITA (Foto: Cinthia Freitas/ G1 CE) Felipe Jonnata é de Salvador e veio morar na Casa do Estudante para se preparar para o ITA (Foto: Cinthia Freitas/ G1 CE)

Felipe Jonnata é de Salvador e veio morar na Casa do Estudante para se preparar para o ITA (Foto: Cinthia Freitas/ G1 CE)

Procurar mudanças e melhores oportunidades de estudo é uma espécie de diversão para o rapaz, que conviveu com o tráfico de drogas em Nova Brasília de Valéria, periferia onde morava em Salvador, tiroteio na porta da escola e conflitos com traficantes. “Vi muito amigo que se envolvia com droga, muitos indo por esse caminho, e o colégio tava ficando muito fácil, eu faltava aula e mesmo assim passava”, relembra.

As situações, corriqueiras, o levaram a buscar a primeira mudança: sair da escola do bairro e conseguir vaga na melhor instituição pública de ensino médio da cidade, em um bairro de classe média, bem longe da sua realidade. “Quando mudei de colégio, a realidade já me incomodava, ninguém tentava mudar. Eu queria saber o que tinha fora. Foi muito bom, porque esse colégio abriu muito minha visão de mundo.”

A crença de Felipe na educação e a vontade de mudança eram incompatíveis com as ideias dos irmãos, os receios e a realidade financeira da mãe, que tem outros sete filhos. Na época, além de estudar, ele trabalhava como Jovem Aprendiz e ajudava nas despesas de casa, mas a família, que se equilibra como possível, precisava mais dos resultados do que dos sonhos do garoto. Como conseguir enfrentar esse caminho? “Eu só ia. Mesmo que ela não entendesse, eu tava fazendo a minha parte”, simplifica.

O sonho, para Felipe, é dar à periferia a oportunidade de enxergar o mundo, como ele conseguiu. “Eu vi que o cara que tá lá dentro e se envolve com drogas é porque não tem referências de fora. O mundo dele tá ali dentro. A família dele, os melhores amigos dele tão ali. Ele não sabe o que tem lá fora. A ideia era mostrar o tamanho do mundo, as coisas acontecendo fora daquele ambiente.” Esse é o mote do projeto Universitários Acima da Média, do qual o estudante é embaixador. E também a base dos futuros projetos sociais que ele pretende desenvolver depois de passar no ITA e deixar a Casa do Estudante.

‘Meus pais fazem o possível’

A dificuldade na busca dos objetivos também é familiar para Flávio Renato Alves, 24, estudante do segundo semestre de jornalismo. Há um ano e sete meses na Casa do Estudante, ele divide o quarto com o amigo de infância, Jhonas Silva, aluno de engenharia civil na Universidade Federal do Ceará (UFC). Ambos são de Madalena, município a 180 km de Fortaleza.

Amigos de infância, Jhonas Silva e Renato Alves dividem quarto na Casa do Estudante (Foto: Cinthia Freitas/ G1 CE) Amigos de infância, Jhonas Silva e Renato Alves dividem quarto na Casa do Estudante (Foto: Cinthia Freitas/ G1 CE)

Amigos de infância, Jhonas Silva e Renato Alves dividem quarto na Casa do Estudante (Foto: Cinthia Freitas/ G1 CE)

Para deixar a vida do interior foi preciso vencer o medo dos pais de soltar os filhos, e deles próprios, de se lançarem ao novo. A irmandade da relação é o que mais ajuda. Na divisão do quarto, revezam as noites de sono entre a cama de solteiro e a rede. Compartilham geladeira, fogão, ventilador e uma estante de livros. As famílias vão mandando ajuda financeira quando podem, e os meninos, que não trabalham, vão se virando.

Foi Jhonas quem chegou primeiro, e depois convenceu Renato a participar da seleção. Para conseguir uma vaga na Casa, localizada na Rua Nogueira Acioli, os candidatos passam por análise de renda, prova e um período probatório de três meses. A seleção ocorre no final do ano, em dezembro, e o processo é coordenado por comissão interna eleita em assembleia geral.

Vida coletiva

A organização da Casa é feita com dois conselhos, diretor e deliberativo, e assembleias gerais, compostos pelos moradores. Em vida coletiva, o grupo divide tarefas domésticas e é responsável pela limpeza.

O local não passa por reforma significativa desde 1982. Segundo conta o atual presidente da Casa, Jhonatan Dantas, de lá para cá, ocorreram apenas manutenções pontuais. Recentemente, uma emenda parlamentar, assinada por 31 deputados, aprovou orçamento de R$ 350 mil destinados à reconstrução dos reservatório d’água, biblioteca e auditório. As obras devem iniciar ainda neste mês.

Portas, pisos, escadas, banheiros, lavanderias e a edificação em geral permanecem com estruturas originais. Passados 83 anos da construção, não é difícil identificar a necessidade de melhorias.

Personalidades do estado e do país já passaram pela Casa do Estudante. Senadores, deputados, ex-prefeitos e vice-prefeitos, ex-presidente da Assembleia Legislativa do Ceará, jornalistas, médicos, juízes, promotores e desembargadores.

‘Engajamento é crucial’

Há quase quatro anos como moradora, a estudante de direito pelo Programa Universidade para Todos (Prouni) e tesoureira da Casa, Fátima Oliveira, 21, defende o engajamento nas atividades admistrativas como melhor saída para preservar a existência do lugar. “Quem pode fazer total diferença são os moradores. Tem tanta gente boa aqui, e a continuidade disso só vai se dar pela cabeça das pessoas, a infraestrutura vai continuar, mas o que é mesmo a Casa do Estudante? São os moradores”, orgulha-se.

Ela também revela a necessidade de firmar parcerias e conseguir captação de recursos para o desenvolvimento do espaço.

Fátima veio de um distrito de Tamboril, interior do Ceará. Na região, nem internet, nem TV são artigos comuns. Cuidar de todas as obrigações de quem vive sozinha, vindo do interior ainda aos 17 anos, foi a maior dificuldade. “Foi bem difícil, quase um ano de adaptação, teve um período que voltei pra casa, fiquei uns três meses e vim de novo”. Para ela, criar raízes ajudou. “Só deu certo quando tentei me engajar mais nas coisas da Casa, criar mais laços aqui.”

Amanda Gonçalves e Fátima Oliveira vieram do interior do Ceará para a Casa do Estudante (Foto: Cinthia Freitas/ G1 CE) Amanda Gonçalves e Fátima Oliveira vieram do interior do Ceará para a Casa do Estudante (Foto: Cinthia Freitas/ G1 CE)

Amanda Gonçalves e Fátima Oliveira vieram do interior do Ceará para a Casa do Estudante (Foto: Cinthia Freitas/ G1 CE)

Sair da zona de conforto e abrir mão das regalias de casa também foi escolha de Amanda Gonçalves, 20, pré-universitária que saiu de Carnaubal para cursar medicina. “Eu chorava de fome, de saudade da mãe, o colégio tinha um ritmo bem diferente, eu tinha medo de andar sozinha, tudo foi um choque muito grande.”

Coordenadora do departamento de biblioteca da Casa, Amanda não demonstra arrependimento. “Hoje estudo mais, porque você passa a se cobrar. E conviver todos os dias com as pessoas também amadurece a gente.”

A convivência com um outro diferente e as responsabilidades de cuidar de si e de um local coletivo, fez da Casa do Estudante um laboratório para a vida. “É um projeto que eu quero apostar, uma experiência muito grande que a gente ganha. Toda boa oportunidade tem suas desvantagens. Pra gente é desvantagem não poder usufruir do conforto do interior, mas é vantagem poder fazer uma boa faculdade, ter moradia e alimentação gratuitas. Tudo que vier, a gente vai passando. Se tiver com medo, vai com medo mesmo”, sintetiza Fátima.

G1

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