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Alexandrina Meleiro: ‘Coragem de Valdivia ajuda a reduzir preconceito contra depressão e doença mental’

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A psiquiatra paulista, maior especialista em suicídio do país, elogia a atitude do ex-jogador do Palmeiras de ir sozinho para a clínica e dá dicas preciosas para detectar e enfrentar os distúrbios da mente

RESUMINDO A NOTÍCIA

  • Mais de 420 milhões de pessoas no mundo tiveram ao menos um episódio de depressão.
  • Cinco doenças da mente estão entre as mais incapacitantes. A depressão é a primeira delas.
  • Há dois casos registrados de depressão entre mulheres para cada um entre homens.
  • O Brasil tem seis casos de suicídio para cada 100 mil habitantes. A média do mundo é de 9,8.
Alexandrina: trabalho pela redução das doenças da mente e do suicídio no país

Alexandrina: trabalho pela redução das doenças da mente e do suicídio no país

ARQUIVO PESSOAL

O craque chileno Jorge Valdivia, de 38 anos, estrela da seleção de seu país e da torcida do Palmeiras nos anos 2000 e aposentado dos campos desde julho de 2022, voltou a ser notícia, na semana que passou, por ter tomado uma atitude corajosa. Abalado por uma forte depressão, amplificada por crises de síndrome do pânico, o jogador se encaminhou — sozinho — a uma clínica psiquiátrica de Santiago, a capital do Chile, e pediu para ser internado. A atitude causou surpresa, estranheza, mas também elogios de estudiosos de temas relacionados às doenças mentais.

Um deles é a paulistana Alexandrina Meleiro, médica pela Faculdade de Medicina do ABC, pesquisadora e doutora em psiquiatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e professora e supervisora do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP. Alexandrina é a maior especialista brasileira, e uma das mais respeitadas do mundo, no estudo das relações entre depressão, doenças mentais e o suicídio.

Nessa conversa com o R7 Entrevista, ela analisou o episódio que envolve o jogador e ofereceu uma avalanche de informações, dados, estatísticas e alertas para o entendimento da depressão como uma das epidemias mais agressivas desse século. “Mais de 400 milhões de pessoas no mundo tiveram ao menos um episódio de depressão. É a doença mais incapacitante da atualidade. Precisamos de investimento e informação para combater esse problema social de saúde”, destaca. Acompanhe:

Como a senhora analisa o caso Valdivia?
Alexandrina Meleiro 
— Terei cautela para falar do caso, como quem o olha a distância. Antes de tudo, é preciso elogiar Valdivia. Foi corajoso como a ginasta Simone Biles e o nadador Michael Phelps, que assumiram publicamente o problema e deram colaborações preciosas à causa. Uma frase de Simone ficou famosa: “Tudo bem não estar bem”. Maturidade e generosidade. Valdivia contribuiu muito na batalha do esclarecimento, para mostrar que as doenças mentais são hoje uma espécie de epidemia mundial. Atingem, no mundo, pessoas de todas as classes, origens, nacionalidades e nível cultural. Precisam ser combatidas com investimento dos governos nos sistemas de saúde, na atenção às pessoas e em campanhas de combate ao preconceito.

É uma doença psiquiátrica e neurológica relacionada ao cérebro. Está ligada à diminuição ou distúrbio na produção e circulação cerebral dos neurotransmissores serotonina, noradrenalina, dopamina e glutamato. Ninguém dorme de bem com a vida e acorda com depressão. Isso é tristeza eventual, normal e comum a todos, que se dilui com o tempo. Depressão é outra história: vem devagar e se instala lentamente, à medida que os sistemas desses neurotransmissores começam a falhar. A pessoa vai perdendo ânimo, energia, vontade de fazer o que admirava até há bem pouco tempo. Perde a energia vital

ALEXANDRINA MELEIRO

Como definir depressão?
É uma doença psiquiátrica e neurológica relacionada ao cérebro. Está ligada à diminuição ou distúrbio na produção e circulação cerebral dos neurotransmissores serotonina, noradrenalina, dopamina e glutamato. Ninguém dorme de bem com a vida e acorda com depressão. Isso é tristeza eventual, normal e comum a todos, que se dilui com o tempo. Depressão é outra história: vem devagar e se instala lentamente, à medida que os sistemas desses neurotransmissores começam a falhar. A pessoa vai perdendo ânimo, energia, vontade de fazer o que admirava até há bem pouco tempo. Perde a energia vital. Deixa de fazer as coisas e muda a rotina de forma importante. Familiares e a própria pessoa precisam estar ligados nesses acontecimentos. Basicamente, há três graus de intensidade: leve, moderada e grave. Nos casos mais fortes, podem ocorrer sintomas psicóticos, sentimento de desapego total à vida e impulsos suicidas, entre outros.

Depressões agudas podem causar sérios problemas, não é?
Certamente. E um dos piores é o suicídio. Há casos — infelizmente, não raros — em que o paciente decide tirar a própria vida, mas, de tão prostrado pela depressão, nem sequer consegue forças para realizar o ato. Quando o tratamento começa a fazer algum efeito, ele, ainda doente, recupera força suficiente para atentar contra si e acaba conseguindo se suicidar. Por isso, nesses casos graves, é fundamental — fundamental mesmo — que esse paciente seja acompanhado e vigiado o tempo todo, até dar sinais de efetiva recuperação. E também ter cuidado com quem tentou o suicídio nos primeiros dias após o tratamento em hospital ou pronto-socorro. Normalmente cuidam, fazem a limpeza e mandam de volta direto para casa. Deveriam encaminhar a um psiquiatra, para cuidar da doença mental em cada caso.

Falaremos sobre suicídio mais à frente. Por enquanto, como está a evolução dos remédios para as doenças da mente?
Esse é outro ponto importante. Eles estão bem melhores do que há duas décadas. Os investimentos buscam aumentar a velocidade de recuperação, com diminuição de efeitos colaterais. Em muitos casos, os remédios provocam aumento de peso e alteração do desejo sexual. Nos últimos 30 anos, as pesquisas desenvolveram medicamentos de ação mais eficaz, com redução profunda desses efeitos. Além disso, podemos aliar esse medicamento a outros remédios, para inibir ou aumentar o apetite, reduzir a insônia e manter a libido, entre outras coisas.

De volta ao caso Valdivia. Ele procurou a clínica sozinho…
É um dado importante. Ele é jovem, tem apenas 38 anos, mas ultimamente sofreu com problemas pessoais e familiares. Após quase 18 anos de casamento, separou-se da mulher, que conhecia desde a infância, deixou a casa em que vivia com ela e os dois filhos e iniciou um relacionamento com uma deputada chilena. Chegou a ser preso, meses atrás, por estar sem documentos. Em julho de 2022, encerrou a carreira nos campos, algo sempre difícil, às vezes traumático para atletas de ponta, acostumados a uma rotina de carinho por parte dos admiradores. Tudo isso certamente contribuiu para o agravamento da situação. Como ele procurou tratamento sozinho, certamente estava sofrendo demais. Além da depressão forte, passava por transtorno de pânico. Nesses casos, a busca solitária é bem mais comum do que os leigos imaginam — e com frequência maior entre os homens.

O número de casos de depressão oficialmente registrado entre mulheres é o dobro do registrado entre homens. Dois casos entre elas para cada um entre eles. O homem evita ao máximo procurar ajuda psiquiátrica e somatiza os sintomas. Em maior ou menor grau, ainda prevalece, em grande parte do universo masculino, a ideia de que homem não deve sofrer, chorar e muito menos assumir isso publicamente. E também a de que tratamento psiquiátrico é coisa apenas para ‘doido, maluco e psicótico’

ALEXANDRINA MELEIRO

Por quê?
É um fenômeno curioso. Depressão, transtorno de ansiedade generalizada e síndrome ou transtorno do pânico são as doenças mentais mais comuns. De acordo com os levantamentos epidemiológicos, o número de casos de depressão entre mulheres é o dobro do registrado entre homens. Dois casos entre elas para cada um entre eles. Por que isso? Porque o homem evita ao máximo procurar ajuda psiquiátrica e somatiza os sintomas. Por desconhecimento e, sobretudo, resistência e preconceito em relação às doenças psiquiátricas. Em maior ou menor grau, ainda prevalece, em grande parte do universo masculino, a ideia de que homem não deve sofrer nem chorar, e muito menos assumir isso publicamente. E, ainda, que tratamento psiquiátrico é “coisa de doido, maluco, psicótico”.

Esse pensamento, de fato, ocorre demais.
E gera dificuldades imensas na hora de buscar tratamento. A cultura não permite aos homens fraquejar. Homens deprimidos muitas vezes somatizam, incorporam os sintomas. Como consequência, apresentam problemas sérios, do aumento repentino da pressão arterial, causador de infarto ou AVC, à dependência química de álcool e drogas. Muitos homens só procuram atendimento quando a ansiedade e o transtorno do pânico aparecem associados à depressão, como, por sinal, foi o caso de Valdivia. Aí ele passa a sofrer de taquicardia, suor desequilibrado, sensação de fraqueza absoluta, medo, dor de cabeça e outros sintomas.

Dependência de álcool e drogas costuma esconder doenças da mente

Dependência de álcool e drogas costuma esconder doenças da mente

FREEPIK

Qual é o panorama do avanço da depressão no mundo?
Preocupante. A Organização Mundial da Saúde, a OMS, escolheu o ano de 2017 como o de atenção às doenças mentais e fez vários estudos. Apuraram que, àquela altura, nada menos do que 322 milhões de pessoas haviam passado por ao menos um caso de depressão, de episódico a crônico, no mundo. A população mundial, que então era de 7,6 bilhões de pessoas, bateu nos 8 bilhões em novembro de 2022. Isso, por si só, implicou em acréscimo. Agora vem o dado mais importante: pesquisas recentes atestam que houve, na pandemia, um aumento de 30%, fora da média histórica, nesse total. Feitas as contas, estamos falando de cerca de outros 97 milhões de casos iniciais, o que eleva o total para algo próximo dos 420 milhões de pessoas no mundo. Isso fora os casos de depressão sem registro e os ocultos.

Os casos de depressão aumentaram 30% no Brasil e no mundo na pandemia. O isolamento forçado é duríssimo de enfrentar. Basta dizer que a principal punição ao crime em nosso país é a prisão. Além disso, houve o medo diante do risco de ser contaminado — e de morrer. Por último, veio o impacto de conviver com a morte de várias pessoas conhecidas, algumas amadas, em um curto espaço de tempo. Uma combinação demolidora. Não por acaso, separações e divórcios, que são fatores de suicídio, aumentaram em média 30% no Brasil e no mundo durante a pandemia

ALEXANDRINA MELEIRO

A pandemia foi violenta também nesse ponto.
Muito. Por uma união perversa de fatores. O primeiro foi o isolamento forçado, a liberdade restrita, algo duríssimo de enfrentar. Basta dizer que a principal punição ao crime, em nosso país, é a prisão, a privação da liberdade. Além disso, houve o medo, a pressão psicológica diante do risco de ser contaminado — e de morrer. Por último, veio o impacto de conviver com a morte de várias pessoas conhecidas, algumas amadas, em um curto espaço de tempo. Uma combinação demolidora do equilíbrio. Não por acaso, separações e divórcios aumentaram em média 30% no Brasil e no mundo durante a pandemia.

Impressionante.
Muito. Cinco doenças da mente estão entre as dez mais incapacitantes no mundo, não apenas para o trabalho, mas para a vida social, em todas as faixas etárias e fases da vida, das crianças aos idosos. Depressão é a primeira. Transtorno de Ansiedade, a segunda. O alcoolismo, que na prática se confunde e camufla doenças mentais, está entre as cinco primeiras. Todas ultrapassaram as doenças cardiovasculares, o que era esperado. Se a pessoa sai curada de um infarto ou AVC, pode se recuperar fisicamente e continuar a trabalhar com saúde. Doenças mentais, por outro lado, são difíceis e, muitas vezes, recorrentes, o que provoca recaídas e atrapalha o processo de recuperação.

A senhora fala em casos não catalogados e escondidos. O que são?
Por desconhecimento e falta de recursos e orientação, há muita depressão oculta em casos de alcoolismo, vício em drogas e impulso agressivo. Há uma retroalimentação entre as doenças mentais e esses comportamentos. A partir de determinado ponto, o alcoolismo e o vício em drogas, por exemplo, alimentam e potencializam a depressão, que, por sua vez, impulsiona o consumo excessivo de droga e álcool pelo paciente. Um vai levando ao outro. Todo mundo conviveu com ou conhece aquela pessoa que bebe bastante, com frequência, e sempre se emociona demais e chora após beber. Ninguém é cronicamente violento ou triste porque “ele é assim mesmo, é a personalidade, o jeito dele”, mas sim porque há algum desequilíbrio emocional, afetivo, psicológico ou psiquiátrico.

Tratar doença mental não costuma ser barato. Consultas e remédios são caros, e o sistema público está longe de oferecer estrutura suficiente na área.
Esse é o ponto fundamental. Por isso a luta para haver mais — muito mais — psiquiatras e psicólogos no atendimento público e também esclarecimento da população. Doença mental é caso típico em que desconhecimento e preconceito caminham lado a lado. Muitas vezes, a pessoa tem restrição porque é vítima da falta de orientação. A coisa mais difícil é esclarecer o tema para esse público. Um estudo mostra que, em média, cada dólar investido no atendimento de uma pessoa com depressão e outras doenças mentais gera uma economia de quatro dólares com ela, no restante de sua trajetória, em tratamentos, remédios e outros procedimentos. Além de tudo, tratamento é medida de economia.

Agora, o suicídio. A senhora é a maior especialista brasileira no tema sob o ponto de vista psiquiátrico. Qual é a situação no Brasil e no mundo?
Os índices são medidos em quantidade anual para cada grupo de 100 mil pessoas. A média do mundo é de 9,8. A do Brasil é de seis. Não é muito alta se comparada à de outros países, mas, como somos 220 milhões de pessoas, no fim, em números absolutos, o volume é grande. A média dos Estados Unidos é de 14,5. Em países como o Japão, a Suécia e outros do norte da Europa, bate nos 24, 25 para cada grupo de 100 mil, às vezes até mais.

E em relação a homens e mulheres?
Também há dados curiosos. Se os casos de depressão entre mulheres representam o dobro do dos registrados entre homens, aqui as estatísticas se invertem: há de dois a três suicídios entre eles para cada um entre elas. Com um detalhe: as mulheres tentam tirar a própria vida mais do que os homens, mas conseguem menos.

A OMS lançou, em 2006, uma campanha mundial para a redução de ao menos 10% nos índices. Em 87% dos países ligados à organização houve queda. Infelizmente, o Brasil e os Estados Unidos estão entre os 17% em que o número de casos não caiu. Por aqui, ao contrário, houve aumento de mais de 10% no período. Triste

ALEXANDRINA MELEIRO

Como estão as campanhas de combate ao suicídio no mundo?
A OMS lançou, em 2006, uma campanha mundial para a redução de ao menos 10% nos índices. Em 87% dos países ligados à organização houve queda. Infelizmente, o Brasil e os Estados Unidos estão entre os 17% em que o número de casos não caiu. Por aqui, ao contrário, houve aumento de mais de 10% no período. Triste. Não merecemos essa marca. Separação e divórcio costumam ser fatores favoráveis ao suicídio — como a gente vê pessoas que matam a ex-companhia e se suicidam depois, não é mesmo? Outro fator, por estranho que possa parecer, é a aposentadoria. A maioria suprema vibra ao se aposentar, mas há uns poucos que não suportam a vida sem a rotina do trabalho. Alguns deles tiram a própria vida por isso.

Como estão os movimentos de combate à depressão e ao suicídio no Brasil?
Fazemos o combate à depressão e ao suicídio em movimentos como o Setembro Amarelo. E em campanhas contra a psicofobia, ou seja, o preconceito contra as doenças da mente, e com programas como o Craque que é Craque não usa Crack, que envolve não só essa, mas todas as drogas.

Muito obrigado.
Eu é que agradeço muito. Tomara que ajude na orientação e no esclarecimento das pessoas. Precisamos disso para a saúde dos paciente e o conforto das famílias.

R7

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