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Avanço do mar e erosão costeira preocupam moradores do Icaraí, em Caucaia, há anos; prefeitura realiza obras para conter problema

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População se mobilizou na região após danos causados a imóveis. Após intervenções que não seguraram impactos na costa, município aposta em novo projeto.

A relação de Natália Sousa com a praia do Icaraí, em Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza, é de família. Antes dela, o pai, Luís Francisco, montou a primeira barraca de praia na orla. No entanto, o negócio dele e outros cinco empreendimentos foram destruídos com os efeitos do avanço do mar na costa do município nos últimos anos.

“Todas as seis barracas foram derrubadas com o avanço do mar. As seis com uma estrutura enorme, muitos funcionários. Foi um prejuízo muito grande.”

 

g1 publica, entre os dias 5 e 7 de novembro, série de reportagens sobre como se dá o avanço do mar e a erosão que atingem o litoral do Ceará. Nesta reportagem, o portal aborda aspectos históricos do problema em distrito de Caucaia, na Grande Fortaleza, e alternativas empregadas para superação do impasse.

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Além de liderar empreendimento, Natália Sousa está à frente de associação de barraqueiros da região. — Foto: Marcelo Monteiro/g1

Além de liderar empreendimento, Natália Sousa está à frente de associação de barraqueiros da região. — Foto: Marcelo Monteiro/g1

Os seis estabelecimentos mencionados por Natália eram localizados na Avenida Litorânea, na praia do Icaraí. A comerciante lembra que, cerca de 20 anos atrás, a via era palco de atrações conhecidas em todo o litoral cearense devido ao potencial turístico que oferecia.

“Era um espetáculo de festas que aconteciam, com espaço, com estrutura grande, e ficou conhecido como um dos espaços de maior expansão em território para poder se fazer um grande evento, como o carnaval e as festas juninas”, lembrou, pontuando que os efeitos do mar destruíram parte da via e dos comércios lá localizados.

Natália Sousa precisou instalar barreira na entrada da barraca para evitar que água invadisse estabelecimento. — Foto: Marcelo Monteiro/g1

Natália Sousa precisou instalar barreira na entrada da barraca para evitar que água invadisse estabelecimento. — Foto: Marcelo Monteiro/g1

Ainda segundo Natália, em 2011, a barraca Dunas, da família dela, e outros comércios foram retirados para a construção de uma estrutura rígida de proteção chamada bagwall na avenida. Com a obra, a parte restante da via — destruída em parte — seria mantida, e as edificações continuariam erguidas. Isso, porém, não foi o que aconteceu.

O taxista Alisson Paulineli sempre quis morar em uma praia. “Era um sonho de criança. Consegui comprar um apartamento aqui e realizar o sonho de morar na região litorânea”. Em 2010, ele se mudou para o Condomínio Morada do Sol, de frente para a obra de contenção.

Lá, ele passou a ter uma moradia tranquila, mas até assumir o cargo de síndico. Além dos 102 apartamentos para liderar, ele passou a conviver com uma nova preocupação, frequente entre os moradores: os impactos do mar na costa.

Alisson Paulineli relembrou que muro do condomínio chegou a ser derrubado pela ação das ondas. — Foto: Marcelo Monteiro/g1

Alisson Paulineli relembrou que muro do condomínio chegou a ser derrubado pela ação das ondas. — Foto: Marcelo Monteiro/g1

Em 2018, a praia do Icaraí teve um dos episódios mais alarmantes devido ao problema. Naquele ano, a área registrou ondas que chegaram a 3,2 metros de altura e invadiram a Avenida Litorânea. Segundo o PGI, as ondas foram consideradas as maiores da última década, levando inclusive blocos do bagwall soltos na praia para a avenida.

“Aqui nós passamos diversas situações que deixaram realmente a gente aflitos. No nosso condomínio, a situação que ficou… Ficou prestes a cair. O muro de contenção [bagwall]não aguentou o forte impacto das ondas e terminou tombando. Isso fez uma erosão, pois, como não tinha nada pra dissipar a força e a energia das ondas, elas foram destruindo a contenção que existia pela frente”, relata Alisson.

 

Se antes Alisson percebia a nova morada como um sonho, a percepção passou a mudar. Com os problemas de ordem costeira, o imóvel teve desmoronamento de muros, passando a se desvalorizar e até mesmo ser abandonado por outros habitantes do local. O problema se estendeu a outros condomínios e casas da região, virando, segundo ele, um “prejuízo geral”.

Alisson Paulineli apontou que bagwall (estrutura na cor branca) não evitou os problemas nas proximidades do condomínio. — Foto: Arquivo pessoal

Alisson Paulineli apontou que bagwall (estrutura na cor branca) não evitou os problemas nas proximidades do condomínio. — Foto: Arquivo pessoal

“Chegou a um ponto de a Defesa Civil ter que intervir. Teve gente que vendeu um imóvel que vale R$ 150 mil por R$ 30 mil. Teve gente que perdeu casa; teve casas à beira da praia, no valor de R$ 250 mil ou R$ 300 mil à época, que se perderam. Perdeu tudo e não ganhou nada.”

Medo de desabamento

 

Uma das pessoas que decidiram se mudar da região foi a professora e corretora de imóveis Ercília Vieira, 60 anos. Ex-moradora de um trecho mais distante dali, ela construiu uma casa na região do Icaraí Velho, de frente para a praia. O imóvel, bastante amplo, servia não só para abrigar o descanso dela, mas também como renda: ela costumava alugar o espaço por temporada em algumas ocasiões dada a proximidade da orla.

No entanto, o mar passou a avançar no terreno da casa — registrado oficialmente, conforme assegurou —, passando a danificar, aos poucos, a estrutura do imóvel devido à erosão da costa. Primeiramente, um muro foi derrubado pelas ondas na parte traseira do terreno, e a água chegou a desgastar a encosta da área em que a casa foi erguida.

Terrenos da casa de Ercília e de imóveis vizinhos sofreram erosão com avanço do mar.  — Foto: Arquivo pessoal

Terrenos da casa de Ercília e de imóveis vizinhos sofreram erosão com avanço do mar. — Foto: Arquivo pessoal

“A piscina teve de ser isolada porque a parte em que ficava o motor foi atingida e já caiu. E a parte do alicerce já tá quase caindo”, frisou a proprietária. O comprometimento das estruturas não atingiu apenas a posse dela; outras casas vizinhas também foram atingidas, segundo Ercília.

Sozinha, ela buscou a prefeitura algumas vezes e, conforme relatou, chegou até a agendar uma reunião com a gestão municipal. Contudo, a pandemia da Covid-19 mudou os planos, e ela não conseguiu mais ir adiante pelo lado oficial. Por conta própria, chamou um engenheiro e um geólogo para ajudar a resolver o problema. Ambos deram um diagnóstico desanimador.

Vídeo mostra efeitos da erosão em casa de ex-moradora do Icaraí, em Caucaia
Vídeo mostra efeitos da erosão em casa de ex-moradora do Icaraí, em Caucaia

“Eles disseram: ‘Não faça’. ‘Se você fizer, vai jogar dinheiro no mato, enquanto não ajeitarem isso aí’. ‘O mar está vindo e está entrando por baixo da terra'”, lembrou. A impotência, assim, motivou uma nova decisão: mudar-se da casa e morar com a mãe, no Bairro Carlito Pamplona, em Fortaleza.

“Eu não moro mais porque eu não tenho coragem nem de dormir lá. Eu morro de medo de o mar dar uma maré forte e entrar. Eu particularmente tenho medo.”

 

Orla de Caucaia

 

Caucaia tem 44 quilômetros de orla banhada pelo Oceano Atlântico divididos em sete praias. O Icaraí é uma delas, com orla de 5,64 km, entre as praias do Pacheco e Tabuba.

Segundo o Plano de Gestão Integrada da Orla (PGI) do município, a orla caucaiense tem, em maior parte, trechos bastante urbanizados, com ocupação desordenada. O documento ressalta que a ação humana desencadeou, entre outros processos, “obras de engenharia para a contenção da erosão acelerada”.

O PGI situa, entre os fatores da erosão na orla de Caucaia, o impacto de obras de engenharia costeira em Fortaleza, o que “interrompeu o fluxo natural sedimentar que abastecia o litoral” do município. Com isso, 20 barracas de praia e outras edificações públicas e privadas foram destruídas, provocando prejuízo de R$ 10,7 milhões e danos ambientais, conforme o texto.

O documento aponta que, entre 1991 e 2013, a praia do Icaraí e a do Pacheco, à leste do Icaraí, sofreram recuo médio de linha de costa de 5,41 metros anuais. O número equivale, em 22 anos, a quase 120 metros de perda de faixa de praia.

O professor e pesquisador Paulo Sousa, do Instituto de Ciências do Mar (Labomar) da Universidade Federal do Ceará (UFC), endossa o documento no que diz respeito à erosão ocorrida na orla do Icaraí ter sido provocada por Fortaleza. Ex-morador da localidade, o docente ainda acrescentou: o problema não ocorreu apenas no Icaraí, mas em toda a costa do município de Caucaia.

Para conter o problema, a prefeitura de Caucaia optou, em 2011, pela implantação do bagwall em um trecho de 1,37 km de forma paralela à linha de costa. O projeto, porém, mostrou-se insuficiente para conter o processo erosivo — houve grande destruição de edificações e a própria obra de defesa costeira foi “parcialmente desmontada“.

Tomada de atitudes

 

Além da queda na especulação imobiliária e da debandada de moradores com medo de algum desastre, a queda do muro do condomínio e a pressão do cargo motivaram Alisson a agir para evitar um eventual caso mais grave com o tempo. “Graças a Deus, a gente não tem constatado um óbito. Mas, se a situação não tivesse sido resolvida, com certeza isso iria acontecer. Seria uma catástrofe anunciada.”

Frente à maré de problemas, Alisson contou que se reuniu com síndicos de condomínios nas proximidades para discutir ações. “Fazíamos reuniões entre a gente tentando buscar uma maneira de provocar o poder público para conseguir que essa época acontecesse, pelo menos para a nossa sobrevivência, pelo menos uma contenção para que não viesse a ter um prejuízo maior”, lembrou.

Assim, o síndico presidiu os movimentos SOS Icaraí e Vamos Pra Cima Icaraí, que contaram, também, com moradores, empresários, comerciantes e esportistas da área. Segundo o síndico, as manifestações conseguiram provocar o Ministério Público do estado (MPCE), e audiências civis públicas foram realizadas sobre o tema tanto na Câmara Municipal de Caucaia quanto na Assembleia Legislativa do Ceará (Alce).

“Com isso mostramos nosso lado de desespero, pois era um desespero que estávamos passando. E chamando o poder público para a responsabilidade dele”, afirmou, citando ter chegado a ir a Brasília com o intuito de angariar recursos para obras no local. “Pela primeira vez, um integrante da sociedade civil foi a Brasília para tentar, junto com a prefeitura, entender como funcionava a busca pelos recursos pra cá, pra Caucaia, para tentar fazer a obra de contenção e os espigões”.

Nesse ínterim, Natália e outros comerciantes agiram paralelamente e fizeram obras por conta própria: segundo ela, foram colocadas pedras na frente dos estabelecimentos para a força e o impacto do mar serem contidos. “A cada ano que se passava, a praia ia sendo devastada, o mar ia avançando mais e ia derrubando todo ano um pouco, uns metros avançando em cima dos estabelecimentos”, relatou.

Contudo, os diálogos com as distintas esferas de poder abriram espaço para realização de uma nova obra na praia, e a população sentiu ter tido “voz e vez com o poder público”, de acordo com a empresária, que também integrou o SOS Icaraí. “A gente pode ver a necessidade que o nosso litoral, em especial aqui o Icaraí, precisaria dos espigões pra poder revitalizar a nova praia”.

Novas obras

 

Conforme a prefeitura de Caucaia, a Secretaria de Infraestrutura (Seinfra) do município fez, em 2021, serviços de enrocamento de pedras arrumadas em toda a extensão da Avenida Litorânea, no Icaraí, como “medida emergencial de proteção do patrimônio público e privado”.

Além disso, a gestão apontou a celebração de um convênio com o governo estadual para a construção dos três primeiros espigões de um projeto que prevê a execução de 11 deles, a serem construídos entre as praias do Pacheco e da Tabuba. A obra, segundo a prefeitura, estava “bem avançada” até o mês de outubro, com o espigão 5 concluído, o 6 com 80% executado e o 7 com 20% da construção em andamento.

Espigões a serem construídos na orla de Caucaia seguem formato senoidal, em "S". — Foto: Prefeitura de Caucaia/Divulgação

Espigões a serem construídos na orla de Caucaia seguem formato senoidal, em “S”. — Foto: Prefeitura de Caucaia/Divulgação

Ainda de acordo com o município, nenhuma gestão havia realizado um projeto que pudesse, de fato, resolver o problema da orla. A previsão da prefeitura era de que a requalificação do litoral, com os três primeiros espigões, fosse concluída até este mês de outubro de 2022.

Questionada pelo g1 no começo de novembro sobre o andamento da obra e a entrega da primeira parte dela, a gestão não respondeu até a última atualização desta reportagem.

A execução da obra passou a ser bem percebida pela população que usufrui do local, como Natália. Nos últimos anos, as barracas do local se reergueram, mas com uma estrutura bem menor do que a anterior. Embora já tenham voltado a praia e acesso a ela — ambas deixaram de existir temporariamente devido à erosão da orla, contou a barraqueira —, a empresária espera que a infraestrutura existente na localidade também receba um olhar do poder público.

“Hoje, a gente aguarda por um projeto que, após os espigões — ou ainda na conclusão dos espigões, ainda não sabemos ao certo — tenha a revitalização da Av. Litorânea, pois ainda nos encontramos lutando nas barracas”, disse, ressaltando a necessidade de um projeto para haver mais segurança entre os empreendimentos. “Com isso, vamos atrair mais pessoas, mais públicos, e a gente poderá atender toda a população em si e os turistas do litoral de Caucaia.”

Problemas pontuais

 

Apesar de o campo de espigões ser esperado para a localidade há anos, moradores da área vivenciam problemas com o andamento das obras.

No dia 10 de outubro, parte do muro do condomínio Panorama Privée desabou durante a madrugada, deixando moradores aflitos. Segundo residentes do prédio, a maré começou a ficar mais forte e a avançar no sentido dos blocos do prédio após o início da construção de um dos espigões propostos no projeto.

A síndica do condomínio, Elizabeth Sampaio, afirmou, na ocasião da queda do muro, ter buscado a Secretaria de Infraestrutura (Seinfra) de Caucaia sobre o caso. Sem conseguir resposta, ela alugou o serviço de uma retroescavadeira para fazer uma contenção com areia da região ao redor do condomínio, seguindo autorização do Instituto de Meio Ambiente de Caucaia (Imac). A obra ruiu com o avanço da água um dia após ficar pronta.

“O que faltou foi uma prevenção e um estudo prévio, que fizessem contenções já prevendo que isso iria acontecer. Nos faltou essa providência da prefeitura”, frisou a síndica à época.

Erosão costeira provoca desabamento de parte de muro em condomínio de Caucaia
Erosão costeira provoca desabamento de parte de muro em condomínio de Caucaia

Ex-morador do Icaraí, o professor Paulo Sousa não acompanha mais de perto a rotina de preocupações que aflige parte dos moradores da área. No entanto, a experiência como professor do Labomar e pesquisador embasam um apontamento sobre o que ocorreu nas proximidades do condomíno: gerou-se um hotspot, ou ponto de erosão concentrada.

De acordo com o docente, a obra visa proteger da erosão, mas esse efeito só ocorrerá com o término do projeto, sendo, portanto, um “produto final”. A implantação, por exemplo, pode trazer impactos de curto prazo, ainda com a intervenção em curso.

“São focos de erosão que, na verdade, acabam afetando aquela circulação hidrodinâmica no local e acaba gerando esse prejuízo, pois a ocupação está muito perto da praia. Isso não significa que a obra está falhando; significa que tá tendo intervenção”.

 

O professor situou que, na época da construção do Porto do Pecém — que promoveu acreção da faixa de areia da praia — foi necessária a construção de um paredão onde atualmente existem as pontes vazadas do equipamento. O paredão, na época da intervenção, provocou erosão na área, mas o processo parou com o tempo.

“Uma intervenção pontual engatilhou um processo de erosão que foi pontual. Depois, quando o porto foi construído e essa obra foi desfeita — e aí eles colocaram as pontes vazadas —, resolveu-se o problema”, considerou, dizendo acreditar que o que ocorre na região do condomínio é um processo similar.

Embora creia que o processo seja pontual, o professor frisa que uma ação que vise esses impactos enquanto os espigões não ficam prontos é “importante”. Tais medidas preventivas podem, por exemplo, ser previstas e realizadas a partir de um estudo chamado modelagem numérica de ondas, que pressupõe a evolução da dinâmica com o andamento da obra. “Precisa-se lidar com esse problema para evitar que esses prédios, esses condomínios, tenham um prejuízo ainda maior.”

Ações preventivas

 

Após a queda do muro, a prefeitura de Caucaia iniciou a construção de um enrocamento na região no mesmo dia da ocorrência. Além disso, foram colocadas pedras na base da parede.

Intervenções ao lado do conomínio Panorama Privée foram realizadas no mesmo dia, após cobertura do caso pela imprensa local. — Foto: Marcelo Monteiro/g1

Intervenções ao lado do conomínio Panorama Privée foram realizadas no mesmo dia, após cobertura do caso pela imprensa local. — Foto: Marcelo Monteiro/g1

Em outubro, o g1 perguntou à prefeitura de Caucaia se a gestão chegou a fazer uma modelagem numérica de ondas durante o projeto, o que o estudo apontou e se os efeitos já sentidos com a implantação dos espigões foram previstos no estudo. A gestão não enviou resposta até a última atualização desta reportagem.

g1, também em outubro, questionou como a gestão tem visualizado a possibilidade de geração de hotspots, dado o problema ocorrido com o condomínio Panorama Privée, e se a prefeitura fez ou pretende fazer enrocamento ou obras de contenção para evitar danos durante a execução das obras. A gestão também não enviou resposta até a última atualização desta reportagem.

G1 CE

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