
O termo “jovens nem-nem” se popularizou para falar daquele público ainda na juventude que “nem trabalha, nem estuda”. Contudo, do outro lado da moeda, estão milhões de jovens e adolescentes com a responsabilidade de estudar e trabalhar ainda enquanto fazem, por exemplo, o ensino médio. Para eles, ainda não há popularização nem de termos, nem de atenção.
O Brasil registrou quase 8 milhões de jovens entre 15 e 29 anos estudando e trabalhando em 2022, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. O número (7.693.000) representou 15,7% da população nessa faixa etária. Da necessidade de uma renda para sobreviver à vontade de entrar no mercado de trabalho, os motivos se diferenciam para este público. No entanto, entre as semelhanças, está a rotina atarefada.
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É o caso de Luís Henrique da Silva Alves, de 18 anos. Ele faz curso técnico em hospedagem em uma escola profissionalizante de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza, e estagia em um hotel na Praia de Iracema, na capital, como parte obrigatória da formação curricular. No mesmo local, ele também atua como contratado do estabelecimento.
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Luís Henrique é estudante do curso técnico em hospedagem de uma escola em Caucaia, no Ceará. — Foto: Kid Junior/SVM
“A gente precisa fazer esse sacrifício para poder estudar e trabalhar. Eu procurei ao máximo me esforçar e correr atrás do meu sonho. Mas eu sei que muitos jovens não têm a condição de só estudar. A gente tem muita desigualdade social. Muitos jovens estudam e trabalham porque precisam trabalhar. É preciso pensar por esse lado também”, declarou o jovem.
Luís Henrique acorda ainda na madrugada para o primeiro dever do dia: o terceiro ano do ensino médio na Escola Profissionalizante Marly Ferreira Martins. Depois, ele se desloca cerca de 20 km, entre Fortaleza e Caucaia, para mais dois afazeres: o estágio e o emprego, ambos em um hotel da orla fortalezense.
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Além de estudar, o jovem estagia e trabalha em um hotel no litoral de Fortaleza. — Foto: Kid Junior/SVM
O estudante não nega que a rotina de escola, estágio e trabalho prejudica a preparação para uma das provas quase obrigatórias na trajetória de todo aluno: o vestibular. “Fica muito complicado para quem pensa em passar no vestibular. Muito mesmo. Eu tento me preparar o máximo que posso. Por mais que você queira, você não consegue porque o físico, o corpo não aguenta”, lamentou o jovem.
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Dados sobre jovens que estudam e trabalham no Brasil. — Foto: Louise Anne/Unidade de Arte/SVM
Questão de sobrevivência
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Samille faz o terceiro ano do ensino médio à tarde, e trabalha à noite. — Foto: Kid Junior/SVM
A madrugada que inicia a rotina de Luís Henrique também encerra o dia a dia de Samille Cristina. A estudante de 20 anos, também no terceiro ano do ensino médio, é mais uma dos milhões de jovens que trabalham e estudam. Ela chega na escola às 13h, e sai às 18h. Logo após, ela vai direto ao trabalho para um expediente que só encerra entre 1h e 2h da madrugada.
Samille é natural do Pará, e se mudou para Fortaleza com os tios quando tinha 17 anos. Eles decidiram voltar para o estado natal, mas a jovem optou por ficar no Ceará, sozinha. “Quando eu decidi morar sozinha, eu tinha de arranjar um trabalho porque eu não sou daqui”, disse a jovem, que trabalha informalmente há mais de um ano em um estabelecimento popularmente conhecido como “espetinho”, com venda de churrascos.
A necessidade de trabalhar e estudar fez, inclusive, a jovem interromper os estudos anteriormente. “Eu tranquei minha matrícula ano passado por conta do trabalho. Eu moro sozinha, e é muito puxado trabalhar e estudar ao mesmo tempo”, desabafou.
“Antes eu tinha dois trabalhos, pela manhã e pela tarde. Como eu estudava pela noite, era muito cansativa. Eu acordava 7h e só chegava 18h em casa. Era muito cansativo, muito exaustivo. Então, tive de focar em uma coisa ou outra. Tive de trancar porque não estava conseguindo estudar e trabalhar ao mesmo tempo”, complementou a jovem.
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Natural do Pará, Samille precisa trabalhar pois mora sozinha no Ceará. — Foto: Kid Junior/SVM
No Ceará, 237.000 jovens entre 15 e 29 anos estudavam e trabalhavam em 2022, conforme o IBGE. Apesar da rotina atarefada, Samille decidiu retomar os estudos — visando também trabalhos futuros empregos. “Eu voltei para a escola porque queria terminar. As vagas de emprego normalmente pedem o ensino médio completo. Eu também penso em fazer faculdade”, disse. Ela considera cursar psicologia, porém, não nega que tem sido complicado focar em vestibular — até mesmo nos dias de folga.
“No domingo, eu foco em descansar mesmo. A minha rotina já é muito corrida durante a semana. Na segunda-feira, tenho de começar tudo de novo. É muito cansativo porque a gente que trabalha não tem a mesma disponibilidade para estudar. Lógico, eu tenho de estudar. Eu, por exemplo, tenho TDAH, então tenho de focar mais, me esforçar mais. É muito mais delicado”, lamentou Samille, comentando sobre o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, condição que leva à dificuldade de atenção às atividades.
Desafios da educação
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Bruna Sonir é diretora em uma escola de tempo integral há três anos, na Grande Fortaleza. — Foto: Kid Junior/SVM
A divergência entre enxergar o trabalho como algo positivo e assumir que ele pode causar prejuízos à etapa estudantil gera desafios para os profissionais da educação. “Como dialogar com alunos e famílias, especialmente em vulnerabilidade socioeconômica, sobre focar nos estudos ao invés do trabalho?” tem sido o questionamento que norteia o expediente de educadores.
“A gente não consegue dizer para esse aluno ‘meu filho, foque nos estudos’, porque já vem uma visão da própria família de que ele precisa trabalhar; que ele já vai ficar maior de idade. Com isso, o aluno fica muito desestimulado em encarar os estudos, em focar nas universidades. Ele se preocupa mais com o trabalho”, comentou Bruna Sonir Lossio Vieira Holanda, diretora de uma escola em tempo integral na Região Metropolitana de Fortaleza.
“O trabalho, além de causar falta, evasão, causa cansaço. Então, são meninos que, muitas vezes, dormem em sala de aula. Nós temos vários alunos que trabalham à noite, em restaurantes. Então, viram a noite, vão para casa de madrugada, e 7h já tem de estar aqui na escola”, complementou a diretora.

Coordenadora de escola fala sobre desafios educacionais dos jovens que estudam e trabalham
O desafio é compartilhado por Debora Fofano, doutora em educação e coordenadora de uma escola em tempo integral. “Os alunos passam o dia na escola, mas, ainda assim, alguns deles encontram algum tipo de ocupação — não chamo nem de emprego, porque geralmente não são situações formais, mas eles encontram algum tipo de sustento depois da escola. Normalmente, à noite”, explicou.
Debora disse ainda que a escola busca a família, para conversar sobre todo esse processo, mas a vulnerabilidade social, muitas vezes, acaba falando mais alto. “São famílias muito desestruturadas. Não é com relação à falta de amor, carinho, não é isso. Mas são famílias sem condições de oferecer um ideal de vida melhor. A desestruturação familiar não dá o suporte que eles precisam para seguir só estudando”, lamentou a coordenadora.
A coordenadora disse que alguns alunos, mesmo conseguindo isenção das taxas de inscrição do Enem e do vestibular da Universidade Estadual do Ceará (Uece), escolhem não ir fazer as provas no dia. “Eles falam ‘ah, é num domingo? Vou não. Dia de domingo, eu durmo’”.
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Debora Fofano é doutora em educação pela Universidade Federal do Ceará. — Foto: Kid Junior/SVM
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