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‘Vitória gigante’, diz chef brasileira escolhida por ícone da gastronomia para assumir restaurante no Louvre

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Ao R7 Entrevista, Alessandra Montagne também falou sobre a criação simples no interior de MG, o passado doloroso por ter sido vítima de violência doméstica e o renascimento na capital francesa

 

“Se alguém fechar a porta, entre pela janela.” Foi com esse pensamento que a chef brasileira Alessandra Montagne superou muitas adversidades na trajetória profissional e encontrou o sucesso na França, país conhecido mundialmente pela refinada gastronomia.

Recentemente, o nome dela ganhou o noticiário ao ser escolhido por um dos maiores chefs franceses, Alain Ducasse, premiado com 21 estrelas do Guia Michelin, para comandar um dos restaurantes do Museu do Louvre, em Paris — previsto para abrir entre este ano e 2025.

Em conversa com o R7 Entrevista,  a chef, de 47 anos, proprietária de dois restaurantes na capital francesa, disse lidar ainda com surpresa com a repercussão do trabalho dela, e contou também os detalhes da saída conturbada do Brasil.

Nascida no Vidigal, comunidade da zona sul do Rio de Janeiro, Alessandra foi criada na roça, como ela mesmo diz, pelos avós. Foi em Poté, no interior de Minas Gerais, que ela aprendeu a cozinhar, ainda menina. Precisou ir embora de casa aos 22 anos, com o filho pequeno, para escapar da violência doméstica.

Apesar do pouquíssimo contato com a mãe, que morava na França, ela conseguiu o apoio do padrasto para se mudar e estudar na Europa. Mas, em meio às novas oportunidades e a descoberta do grande talento, vieram as batalhas na Justiça para ter o filho junto dela.

Direto da capital francesa, em um bate-papo via e-mail devido à agenda lotada, a chef brasileira, hoje mãe de um casal, falou sobre a virada na vida pessoal e os segredos da sua cozinha criativa — e sustentável —, e confessou ter o desejo de voltar a viver um dia na terra natal.

R7 Entrevista  —  Alessandra, você acabou de receber a confirmação de que vai comandar um dos restaurantes do Museu do Louvre a convite do renomado chef Alain Ducasse. Quando você começa a trabalhar no restaurante? Qual significado tem essa conquista?

Chef brasileira é proprietária de dois restaurantes em Paris

Chef brasileira é proprietária de dois restaurantes em Paris

ANNE CLAIRE HERAUD / DIVULGAÇÃO

Alessandra Montagne — As reformas já começaram. A princípio, abriria no segundo semestre, mas, como é ano olímpico, e Paris vai sediar a competição, pode ser que fique para 2025. Mas vai abrir o mais rápido possível, com certeza. Sobre o significado, isso representa uma vitória gigante para mim. A ficha demorou para cair. Estou muito feliz. Quero entregar uma comida boa no Louvre, para que os clientes fiquem felizes. Restaurante em museu é diferente porque o público é na maioria turista, pessoas que, talvez, só passem pelo Louvre uma vez na vida. Então, quero que a pessoa saia dali alimentada nos dois sentidos: o espiritual e intelectual, porque você aprende muito [com as obras de arte], mas também com aquele sentimento de a experiência ter feito bem para o corpo, graças a um almoço gostoso que a gente vai proporcionar.

R7 — Como você conheceu o Alain Ducasse? E como nasceu essa relação? Ele é como um mentor para você?

Alain Ducasse (ao centro) com chefs do seu seleto grupo 'Geração Ducasse'

Alain Ducasse (ao centro) com chefs do seu seleto grupo ‘Geração Ducasse’

PHILIPPE VAURÈS SANTAMARIA/REPRODUÇÃO/ INSTAGRAM @ALESSANDRAMONTAGNE

AM — Conheci Alain Ducasse quando ele veio ao meu primeiro restaurante. Ele gostou da comida, do tempero e do meu jeito de receber as pessoas sempre para cima, sorridente. E aí, rolou uma confiança mútua, sabe? Ele me chamou um dia para fazer um evento, e eu fui de olhos fechados. Sempre que me chamava, eu ia. Fomos construindo uma relação de trabalho e de confiança muito grande, que se reforçou na pandemia.

Alain Ducasse organizava uns “apéros” [reuniões de degustação] no barco dele para personalidades, ministros, uma turma super VIP, e me chamou para fazer junto. A relação ficou ainda mais próxima. Um dia, saiu um artigo grande no [jornal] Le Monde sobre mim, e ele me ligou morrendo de orgulho, emocionado, dizendo que não sabia da minha história, do meu passado. E me abraçou em definitivo. É meu grande mentor, sim.

Outro dia, quando eu estava gravando, ele apareceu no [restaurante]Nosso com três pessoas. Depois, me ligou para dizer que estava tudo maravilhoso e que ficou feliz de saber que tudo corre redondo, mesmo quando não estou lá.

R7 — Atualmente, você tem dois restaurantes em Paris: Nosso e Tempero. O menu tem combinações entre Brasil e França? Qual a identidade de cada um? O que eles representam para você? E como vai conciliar a administração dos seus negócios com o novo projeto?

Pão de queijo com caviar servido no restaurante Nosso

Pão de queijo com caviar servido no restaurante Nosso

MAKI MANOUKIAN/ REPRODUÇÃO/ INSTAGRAM @ALESSANDRAMONTAGNE

AM — Eu sempre busquei entender como fazer essa mestiçagem com a cozinha de outro país, sem desnaturalizar e respeitando os códigos da cozinha francesa. Porque queria colocar as minhas lembranças de cozinha brasileira, com meu temperinho da roça, mas continuar respeitando a cozinha francesa.  O Tempero é um bistrô, tem uma misturinha de Brasil e França. Já o Nosso é super gastronômico, tem menu degustação e também uma pitadinha de Brasil: sirvo pratos como o pão de queijo com caviar e a coxinha, por exemplo.

Agora, sobre o Louvre, o meu plano é treinar a equipe e ficar um dia por semana lá. No resto do tempo, me divido entre Nosso e Tempero, que são colados um no outro.

R7 — Recentemente, você lançou o livro De Rio à Paris, Ma Cuisine de Coeur. Ele tem previsão de ser traduzido e lançado no Brasil? Qual a sua receita favorita?

AM — Eu só coloquei comidas que amo. Então, fica difícil escolher uma favorita. Mas acho que o pudim — quem não gosta de pudim, gente? — e a rosca da roça, que a gente chama de rosca do pobre, porque não vai manteiga —  eu tinha esquecido o quanto é gostosa!

Quanto ao lançamento do livro no Brasil, os direitos são da editora francesa que o publicou. Então, alguma editora brasileira teria que procurá-los para comprar os direitos de publicar. Isso ainda não aconteceu, mas seria muito bom!

R7 — Como é a sua relação com a cozinha? O que você acredita ser sua característica singular?

Alessandra gosta da participação da equipe na cozinha

Alessandra gosta da participação da equipe na cozinha

ANNE CLAIRE HERAUD / DIVULGAÇÃO

AM — A cozinha é onde me sinto mais livre e protegida. É na cozinha que me sinto no meu lugar. Minha característica singular é que faço uma comida participativa. Minha equipe pode participar do menu, sugerir receitas e ingredientes. Para mim, é importante essa generosidade de deixar as pessoas criarem e testarem as ideias delas também.

R7 — Você é adepta da culinária sustentável. Quais ações são implementadas nos seus restaurantes?

Comprar alimentos de produtores locais é uma prioridade

Comprar alimentos de produtores locais é uma prioridade

ANNE CLAIRE HERAUD / DIVULGAÇÃO

AM — Sempre tive composteira na minha cozinha. Hoje, tenho uma bem grande do lado de fora, toda projetada, porque não tem lixeira dentro da cozinha. Faço uso integral de tudo mesmo e compro bastante de produtores da região parisiense, locais. Outro exemplo é a própria mucilagem que compro da fábrica de chocolate que descartaria aquilo, e transformo em comida.

R7 — Você estudou a naturopatia. Esse conceito de usar o poder curativo da natureza é levado para a sua cozinha?

AM — Sim, entra muito. Por exemplo, uso o óleo essencial de tangerina em uma sobremesa servida à noite, porque ele acalma, ajuda a dormir. Se é uma carne ou algo mais pesado, adiciono um bom digestivo, como a raiz de coentro. Quando o menu é harmonizado com muitos vinhos, busco sempre incluir alguns chás para equilibrar.

R7 — É difícil falar da sua carreira sem falar da sua trajetória pessoal. Você nasceu no Rio, mas foi criada por seus avós no interior de Minas Gerais. Você passou por muitas dificuldades para chegar onde chegou. Como foi a sua infância? Foi com a sua família que você aprendeu a cozinhar?

AM — Foi uma infância simples e tranquila. Sempre adorei cozinhar, porque a minha avó me ensinou muito cedo. Bem pequenininha, eu já sabia fazer galinha, arroz, feijão, todos os legumes da horta. Eu tinha aquele prazer, sabe, de fazer os legumes bem fresquinhos. E foi uma infância de pé no chão, na roça mesmo. Eu era feliz, não sabia que o mundo tinha mais do que aquilo.

R7 — Em outras oportunidades que pude te ouvir contar sobre a sua história, escutei você relatar que reencontrou sua mãe quando já era uma menina. O que mudou na sua vida a partir desse momento? E como você lidou com tudo isso?

AM — Eu reencontrei a minha mãe aos 11 anos. E foi aí que me dei conta de quem eu era e comecei a me questionar como ninguém faz nessa idade. Minha mãe reapareceu casada com um francês, vivendo uma vida muito diferente, e eu via esse contraste entre nós duas. Comecei a me questionar qual era o meu lugar. Na escola, começaram a me ver como “a filha daquela moça que mora na França, se veste bem e usa perfume caro”. Foi muito estranho durante muito tempo. E, anos depois, quando cheguei à França, foi bem complicado. Nunca falamos sobre o passado, por onde ela andou nos primeiros anos da minha vida, nada. Virou um tabu entre nós. Ela morreu sem termos tido essa conversa.

R7 — Ainda no Brasil, você engravidou aos 16 anos e viveu um relacionamento abusivo. Como foi se desvencilhar dessa situação de violência? Foi o saber que você já tinha adquirido para cozinhar que conseguiu financiar a sua saída de casa?

AM — Eu fazia coxinha para vender e escondia uma parte do dinheiro, porque tinha planos de fugir com meu filho. Eu sabia que se ficasse, meu marido ia acabar me matando. Um dia, um primo dele que morava em Boston [Estados Unidos] veio para o Brasil e o convenceu a ir para lá, trabalhar na construção civil. Ele pegou os meus documentos, entregou para a mãe dele e foi embora. Aí, aconteceu tudo muito rápido: peguei os documentos de volta, uma mochila, liguei para minha tia que morava em Itaquera [em São Paulo], comprei a passagem de ônibus, peguei o André pela mão e fugi. Tudo o que eu tinha eram R$ 150 no bolso e o meu filho. Lembro dos detalhes dessa viagem até hoje. Foram 22 horas de estrada, há 26 anos. Almocei com o André antes de entrar no ônibus, porque sabia que não teria dinheiro pra comer na estrada. Lembro do ônibus se distanciando de Poté. Em São Paulo, minha tia me pegou na rodoviária do Tietê e fomos para a casa dela, em uma comunidade de Itaquera.

Em um momento, contei para a família dele porque fugi. Ninguém sabia que ele me espancava, mas, no fundo, todo mundo sabia. Durante o divórcio litigioso, contei tudo o que me aconteceu e muitas testemunhas foram ouvidas. Foi aí que vi a cegueira coletiva. O dentista falou que até desconfiou ao me ver aparecer mais de uma vez com o dente quebrado e o olho roxo, mas, quando eu inventei uma desculpa, simplesmente aceitou. A vizinha disse que acordava com meus gritos à noite e achava que eu estava tendo pesadelos, até porque “não dava para se meter em vida de casal”. Todo mundo sabia e ninguém fazia nada.

É doloroso sempre que falo sobre isso, mas é importante porque muitas mulheres passam por essa situação no Brasil. Só me dei conta disso quando cheguei à França. Aqui, o corpo da mulher é super protegido. Me dei conta de que tinha algo de anormal naquilo que eu tinha passado.

R7 — Ao sair de Minas Gerais, você acabou procurando a sua mãe novamente. Ela foi a ponte para você chegar a Paris? Ao decidir se mudar, você precisou tomar a difícil decisão de ir para outro país e deixar o seu filho no Brasil com a sua família, até que você pudesse se estruturar. Ao olhar para trás, como você vê o que viveu?

AM — Liguei para minha mãe e meu padrasto assim que cheguei na minha tia. Ele me pediu 24 horas para ver o que podia fazer. De novo, foi tudo muito rápido: um amigo dele disse que teria um emprego para mim, mas eu precisava falar francês. Tirei o visto voando para passar seis meses estudando a língua de lá, mas não poderia levar meu filho. Minha tia imediatamente disse que cuidaria dele. Então, eu fui. Não tinha escolha. Só depois fui entender que, para trazer o André para a França, eu teria que me divorciar, conseguir a autorização da Justiça. Eu era muito nova, não sabia de nada. Foram três anos de muita luta na Justiça até que eu, finalmente, conseguisse trazê-lo para ficar comigo.

R7 — Quando você chegou à França, você já tinha em mente que gostaria de estudar e se formar na área de gastronomia?

Chef une os sabores das culinárias brasileira e francesa

Chef une os sabores das culinárias brasileira e francesa

ANNE CLAIRE HERAUD / DIVULGAÇÃO

AM — Nunca passou pela minha cabeça ter um restaurante e fazer disso uma profissão. Me lembro da primeira vez que fiz comida na França para vender, foi uma feijoada em um festival de música. Apareceu essa oportunidade e eu fiquei com vergonha de cobrar as pessoas. Fiquei com tanta vergonha quando a pessoa me deu o dinheiro que pedi para quem estava me acompanhando dar o troco. Fiquei toda sem graça, sabe? Comer, para mim, é como beber água, e não fazia sentido cobrar de alguém para dar um copo de água. Então, realmente, nunca tinha pensado em fazer disso uma profissão.

Quando cheguei à França, eu fazia aquela cozinha intuitiva, sem as bases e os códigos da cozinha francesa. Aí, entrei numa escola para aprender como fazer a cozinha francesa de verdade, como se comportar em um ambiente profissional, qual o vocabulário desse lugar. Eu queria fazer uma imersão total e aprender a base muito bem. Aprendi a cozinha francesa bem “Escoffier” [o chef Auguste Escoffier é considerado o pilar da alta gastronomia moderna].

R7 — Como foi construir sua carreira na França? Você enfrentou alguma resistência por ser mulher e estrangeira quando chegou a Paris?

AM — Vou responder sinceramente: acho que aqui, na França, isso não me empacou, até porque a cada vez que encontrei obstáculos, por ser mulher ou estrangeira, procurei outro caminho. Como diz aquele ditado: “se alguém te fechar a porta, entre pela janela”. Mas, claro, que rolaram coisas. Por exemplo, em um evento muito importante, eu senti claramente que, pelo fato de ser mulher, demorei a ser “respeitada” pelos homens da cozinha. Tive que agir com firmeza e impor respeito, e isso não foi necessário, por exemplo, com os outros chefs homens do evento. Outra situação desagradável é quando no restaurante alguém pergunta para qualquer homem na cozinha (estagiário, aprendiz, chef de partida) se ele é o chef comigo ao lado! Quando a pessoa em questão diz que sou eu a chef, daí rola aquele desconforto.

R7 — Depois de tudo o que você viveu, como é sentir o reconhecimento pelo seu talento e trabalho, especialmente em um país apaixonado por gastronomia? Há algum momento mais especial durante a sua trajetória?

AM — Me sinto pasma e surpresa. Ainda estou me adaptando, porque eu não estava preparada para toda essa repercussão. Fui trabalhando e fazendo acontecer, e aí, do nada, você sai do anonimato e todos começam a te procurar! Estou processando ainda. O momento mais especial da minha trajetória foi quando eu consegui trazer meu filho. Essa foi a maior vitória da minha vida: ter me libertado. Quando ele chegou aqui, eu pensei: “pronto, agora posso viver”. Foi o melhor momento da minha vida, o mais importante.

R7 — Atualmente, como é a sua vida e a rotina na França? E a sua relação com o Brasil? Já voltou ao país ou pensa em retornar em algum momento para viver ou desenvolver algum projeto?

Alessandra pensa em voltar a viver no Brasil daqui a alguns anos

Alessandra pensa em voltar a viver no Brasil daqui a alguns anos

ANNE CLAIRE HERAUD/ DIVULGAÇÃO

AM — Me levanto bem cedo e pratico esporte todos os dias, corro ou faço musculação. Tomo café e chá o dia inteiro — aliás, preciso parar de tomar tanto café! E, quando não trabalho à noite e nos finais de semana, cozinho para a família e saio com meus filhos. Fiquei 16 anos sem voltar para o Brasil. Quando fui para palestrar no congresso Mesa Tendências, comecei a fazer as pazes com o país e agora estou voltando a viver a minha terra, me apegando novamente e amando. Quero voltar de vez quando estiver mais velha. Minha vontade é viver o resto da vida aí.

R7 — Com tantas conquistas recentes, qual o próximo sonho que você gostaria de realizar? O que pensa para o futuro?

AM — O plano agora é fazer a coisa toda acontecer: abrir o restaurante do Louvre, o Nosso continuar crescendo e a equipe continuar bem e feliz. É uma luta no dia a dia fazer com que todos fiquem bem e achem o equilíbrio. Já é um projeto de vida fazer com que os negócios continuem funcionando e tentar, no meio disso tudo, achar um equilíbrio para minha vida pessoal também.

R7

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